sábado, 25 de novembro de 2017

Para dizer o que as palavras não conseguem

Uma dança é um agridoce que nos entala a garganta. Um nó no estômago que nos cerra as mãos. Uma ossada que é largada e que se assemelha a uma eterna despedida. “Até já. Foi bom conhecer-te.” – digo sempre que saio de um palco, penso sempre que entro noutro.
Cada entrada e saída são caminhos diferentes que tomamos, mesmo que a coreografia se esqueça, mesmo que a música se engasgue, mesmo que as palmas não se façam ouvir. Dançar é isso mesmo. Caminhar em pontas sobre o trilho da vida, e quando os pés doerem ter a coragem de descalçar as sapatilhas.
É receber o ridículo que dá medo e dar ternura que suporta. Acho que é uma espécie de grito que dou para dizer “vai ficar tudo bem”. Se sempre que dançasse pudesse cristalizar esses momentos, tinha já muitos belos cristais em casa! Mas não consigo… e por isso imprimo no corpo. O melhor sitio para se estar vai ser sempre no palco. A dançar.
E se a cada passo nosso correspondesse um compasso de música, eu ainda poderia estar ali em cima. Talvez eu nunca tivesse saído de lá. Talvez eu tivesse descoberto mais cedo os prós e contras do silêncio exigido pelo ritmo que a vida leva.
Neste preciso instante preciso de parar- dizem. Hoje danço ao ritmo que a minha máquina permite que não é muito, mas que ainda assim me chega para descobrir micro tons para o reinventar todos os dias, quartos de tons suficientes para lhe dar casa e reconfortá-lo em dias menos quentes, e contrapassos entre agudos e graves para o ir abstraindo do tempo real.

Não sou a melhor pessoa para falar de arte, perdi esse prestigio no dia em que saí do ultimo palco que pisei, porém, ninguém me pode parar o corpo quando este grita que no corpo e na alma é que está o coração. Ninguém o pode parar quando ele se sintoniza com o ritmo para se dizer sinónimo de amor. Quando só os artistas amam. Quando só com amor se faz arte. E quando o meu coração estiver cansado, alguém que dance por mim. Quem dança é muito mais amado. Quem dança é muito mais feliz.



Uma Didascália
por Anónimo

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Material I

«Devo falar de mim? Eu, aquela de quem se fala quando falam de mim. Eu, lixo de um homem, eu lixo de uma mulher. Lugar comum sobre lugar comum. Eu, inferno de sonhos que transporta o meu nome ao acaso. Eu, medo do meu nome ao acaso. Eu, corpo de ninguém, abandonado.»
(Texto: Carolina Figueiredo, a partir de Material de Medeia de Heiner Müller)

O que custa é (re)começar.

Como em tudo na vida, até entrarmos no ritmo somos invadidos pela corrida constante do ter de chegar a algum lugar. Depois de um mês sem te escrever, parece difícil encontrar as palavras certas para te contar, uma vez mais, uma das minhas experiências. A verdade é que aquilo que hoje te vou contar também demorou o seu tempo a instalar-se em mim.

Desta vez vou contar-te a minha experiência dividida em três volumes (Material I, II e III) sobre uma disciplina que estou a ter na Universidade, que se chama Prática e Direcção de Actores.

Em Prática e Direcção de Actores, nós temos de dirigir e encenar pelo menos dois colegas e temos também de entrar como actores noutras encenações, tendo todos como base o texto Material de Medeia de Heiner Müller.

Se conheces a história da Medeia, o mito, ou a peça de Eurípides, então a Medeia Material é uma visão dessa Medeia. Medeia a mulher que traí o seu povo para ficar com Jasão. Medeia a mulher que é trocada. Medeia a mulher que mata os filhos. Medeia a mulher que foge.

Como é que eu vou encenar isto? Pensei eu um pouco assustada. Conhecia a história da Medeia, mas o texto de Müller tem uma linguagem um pouco mais complexa do que o de Eurípides, é um texto muito forte que está dividido em três partes: o reconhecimento da catástrofe (o depois da traição de Medeia ao seu povo), o abandono (e as suas consequências: matar os filhos e a mulher com que foi traída) e por fim o vazio que resta depois da "tempestade".

A minha primeira ideia foi transportar esta Medeia para os dias de hoje e imaginei que a cena se poderia passar numa daquelas festas completamente degradantes, onde ninguém se sente bem, mas todos estão no local como se nada fosse. Sabia também que queria que o papel da mulher estivesse bem presente nesta encenação e que houvesse de alguma forma referências ao feminismo, porque a Medeia, é claramente uma mulher de força que representa a tentativa de igualdade entre mulher e homem. Para além disto, tive logo a ideia de que a Medeia iria cozinhar os seus filhos em cena, sendo que me baseei numa realidade que aconteceu há cerca de 4 anos, onde o Daesh cozinhou um dos seus reféns e deu-o a comer à sua mãe. Esta imagem tão crua veio-me à memória no momento em que li o texto e pensei na forma como Medeia poderia ter matado os seus filhos. Dentro deste tema do Daesh, pensei que poderia seguir esta linha também da guerra, fazendo com que o Jasão pudesse ser um membro do Estado Islâmico, de modo a tornar mais actual a história em si. Sabia também que teria de encenar três pessoas, logo teriam de haver três personagens, por isso lembrei-me que a mulher com quem Jasão traí Medeia também teria de estar na minha encenação. Com estes dados encontrei pessoas reais pertencentes ao Daesh no qual cada um dos meus actores se poderia basear e ter referências.

Posta a parte teórica, foi preciso passar à prática.

E agora?

O que é que eu faço com os actores?

Como os vou dirigir para passarmos à parte prática?

E se eles não perceberem nada do que eu pretendo?

E se eu não me souber explicar?

E se isto ficar tudo uma grande * ?

A cabeça parece uma montanha russa de pensamentos, os medos aparecem todos e tornamos-nos inseguros. Acredito que isto seja normal. Acredito que todos nos sintamos perdidos às vezes, mas isso não significa que esteja tudo acabado e que não haja esperança.

Ah, e ainda falta escrever o texto!


Que comece o ensaio, como o nosso professor diria: Acção!


(To be continued)






Uma Didascália, 
Por Carolina