segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Varvara Mikhailovna

Como distinguir dos outros
O teu amor verdadeiro
Trás sandália, Trás bordão
Concha de Romeiro

Aí morreu senhora e partiu
É somente um morto
Junto aos pés tem uma pedra
Relva sobre o corpo

Canção Ofélia, Hamlet de William Shakespeare 



Um titulo estranho. Uma canção do Hamlet. Um cartaz com uma peça do Chekhov. Qual será a ligação de tudo isto? (Perguntas tu.)

Varvara Mikhailovna é o nome completo da personagem Vária, da peça O Cerejal de Anton Chekhov. 

Eu fui Vária, a pessoa que toma conta de uma herdade, a filha adoptada, a mulher que tenta que lhe obedeçam, a pessoa que tenta colocar tudo em ordem, que não pode ficar sem trabalhar, que parece ter mais consciência do que a própria mãe, que sonha em ser freira, mas ao mesmo tempo quer casar com um homem com quem todos tentam juntá-la, mas que este em nenhum momento é capaz de demonstrar verdadeiramente o que quer. Eu fui Vária, a mulher que tal como Ofélia, não vai para o convento, não consegue salvar a família, não consegue encontrar o amor. Eu fui Vária, no projecto de Oficina de Teatro, na Universidade de Évora, na nossa adaptação chamada Um Jardim de Cerejeiras.

Este projecto está aqui porque me trouxe novos horizontes no trabalho enquanto actriz, fez-me também superar dificuldades e deu-me também uma fantástica consciência do que eu sou enquanto represento. Trabalhámos com o actor e encenador Alexandre Pieroni Calado, e posso afirmar que até ao momento foi o projecto que mais conteúdo me deu. 

O nosso trabalho foi feito à base de improvisação, algo em que até ao momento eu sempre tinha tido muitas dificuldades, e que graças a uma nova introdução do professor, fez com que tudo ficasse mais simples e claro para mim. Trabalhámos a improvisação de cenas especificas do texto de Chekhov, através de situações análogas, ou seja situações reais nossas que se podiam identificar com as sensações e objectivos da cena. Isto para mim fez com que tudo se tornasse muito mais simples e verdadeiro. 

Dentro disto, as personagens foram trabalhadas de forma semelhante, onde o importante não era criar a personagem em si, mas sim encontrarmos-nos na personagem, ou seja, identificarmos os nossos sentimentos e sensações com o que a personagem sente nos determinados momentos, assim conseguimos mostrar sempre uma verdade que parece ser real. As personagens somos nós próprios nas situações propostas, como nos diz Pavis «O actor não representa, mas sim apresenta». As cenas e as personagens deveriam sempre servir o acontecimento principal de cada momento, trabalhávamos em conjunto para que fossem visíveis os momentos de destaque e mudança nas cenas, pois seguiamos as directrizes de Anatoli Vassíliev, que nos diz que o actor deve sempre estar informado em relação a toda a cena, saber as acções e os acontecimentos principais, e com essa informação improvisar, ou seja criar novas coisas a partir do que lhe é dado,encontrar através do instinto momentâneo da improvisação situações que sirvam o acontecimento principal e reagir ao estimulo que o outro nos dá.

Criada a parte do esqueleto, da compreensão das personagens e do meio que as envolve, partimos para um trabalho bastante minucioso onde cada um tinha de criar a sua própria partitura de movimentação exterior e interior da personagem, com base nas marcações do encenador. Este conceito de partitura veio dos textos de Grotowski. Criámos assim as nossas próprias partituras, o que, no meu caso, me deu uma consciência espectacular de toda acção da minha personagem, cada parte do meu corpo tinha uma partitura para cada momento em que eu estava em cena e consequentemente o meu sub-texto fazia parte da partitura. 

Neste tipo de trabalho não há espaço para a auto-critica enquanto estamos em cena, nem há tempo para pensarmos no que os outros estão a pensar, ou no que quer que seja que esteja fora da nossa partitura já planeada e preparada para nos dar a segurança da nossa personagem. É preciso um nível de concentração elevado e consciência do outro que nos rodeia. Estamos sempre presentes na acção e nos acontecimentos principais, no fazer acontecer e como eu posso contribuir para isso. Entramos num outro estado, impossível de colocar em palavras.


«Qualquer artista concorda que há um momento em que existe uma ligação com algo superior ao nosso próprio entendimento.»
Gustavo Santaolalla

Acontece que esta ligação aconteceu comigo, com esta peça, com esta personagem, com este trabalho, e é por isso que ele foi tão importante para mim. Somos sempre seres em constante actualização e mudança, vamos mudando e encontrando as nossas próprias ferramentas de trabalho e compreendendo como podemos melhorar. O processo não foi fácil, mas quando acabou compreendi o valor e importância que teve para mim enquanto futura actriz. Nem sempre, ou quase sempre, o resultado final consegue demonstrar o que fica connosco. Isto foi  parte do que ficou comigo. É longo e extenso. Mas é importante para mim. Foi importante para mim. E é por isso que está aqui. 

Só podemos ser outro sendo nós próprios, aceitando-nos, conhecendo-nos, confiando em nós, e desligando-nos da frequente obsessão de "o que é que os outros estão a pensar de mim?". 
A magia acontece quando saímos do lado de lá da linha, da bolha, da consciência, do conforto. Sejas tu actor, pintor, canalizador...

Eu fui Vária. Eu fui Carolina. Eu fui Varvara Mikhailovna. Eu sou eu. Quem és tu?

Fotografia: Sofia Ribas



Uma Didascália
por Carolina

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