quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Somos os actores da nossa própria desgraça

(Imagem Modos de Ver: Sintra)


Hoje vou contar uma das experiências mais assustadoramente belas que tive a assistir ou a representar numa peça de teatro.

Confuso não? Assistir ou representar? É que na verdade venho contar-vos a minha experiência enquanto espectadora do Modos de Ver: Sintra, um audiowalk onde na verdade nós somos os actores, nós fazemos a história, ao mesmo tempo que assistimos ao que vamos ouvindo. Os audios são diferentes em cada pessoa, e há momentos em que estamos em grupo e outros em que estamos separados, consoante o que nos é guiado.

Ora, vocês podem achar que o que vos descrevo é tudo menos uma peça de teatro, mas na verdade, os audio que me calharam no meu percurso guiavam-me muitas vezes para uma ideia de espectáculo próprio, onde as ideias de grupo, atenção, caminho, direcção, objectivo e interacção estão sempre a ser incutidas de forma por vezes subtil, de outras vezes bastante directa. Cabe a nós a decisão de seguir ou não as instruções e no meu caso eu tive a liberdade de ir pelo caminho que quisesse.

Foi Assustador. Desafiante. Desconfortável. Desprotegido. Protegido. Apaixonante. Avassalador.

Foi uma mistura de sensações porque eu me perdi. Literalmente. Eu fiquei perdida no meio do audiowalk, e isto serve para os dois sentidos da palavra perdida. Perdida no espaço e perdida na alma.

Para não vos contar tudo, porque apesar da temporada deste ano já ter terminado, penso que existirão outros audiowalks deste género nos próximos anos e por outros sítios, por isso vou apenas dizer-vos o essencial desta experiência, para que no futuro possam ser vocês a viver tudo ou ainda mais do que aquilo que eu vivi.

O audiowalk aconteceu em Sintra, e no audio que me calhou, a minha primeira indicação era para me afastar do resto das pessoas e caminhar na direcção que eu quisesse, assim o fiz, ao longo da caminhada tive momentos em que vi alguns dos outros participantes/actores, mas tive também momentos em que estive completamente sozinha.

Bom, o grande momento dá-se quando me apercebo que estou sozinha, no meio de uma zona que eu não conheço bem, (eu não sou de Sintra, passo lá muito tempo, mas sou uma pessoa muito má a decorar caminhos, e por isso facilmente me perco), para além disto, eu tenho dificuldade em andar sozinha à noite por razões que não vêm ao assunto neste momento, então deparei-me com uma situação bem complicada quando a meio da minha "caminhada"/representação oiço a indicação do audio/encenador para chegarmos todos a um determinado lugar, dentro de pouco tempo, e a avisar-nos que no início e durante o nosso percurso, foi-nos dando sinais e dizendo para não nos esquecermos dos outros e do grupo, estarmos sozinhos mas ao mesmo tempo em contacto com o outro. E agora? Pensei eu. Estava no meio de alguma estrada escura, já não tinha ninguém ao pé de mim do audiowalk, não tinha horas, (porque me recusei a utilizar o telemóvel, visto que uma das indicações iniciais foi a de não o utilizarmos), e portanto quando me deparei com esse momento, confesso que cheia de medo, corri, muito, quase que como pela minha vida. Procurei indicações, tentei recordar-me de caminhos que conhecia, e cheguei bem antes do tempo ao lugar estipulado. Senti-me segura quando encontrei uma pessoa/actor que também estava no meu grupo do audiowalk.

Os meus pés chegaram à terra, e o meu coração acalmou. Consegui superar o meu medo naquele momento, mas a minha adrenalina estava inconstante. Estava assustada e feliz ao mesmo tempo. Durante a minha caminhada vi sítios que nunca tinha visto, encontrei paisagens que nunca tinha reparado e pisei o chão de uma forma consciente. Estava atenta ao que me rodeava, era só eu, por momentos estava só eu o palco e o encenador, ao mesmo tempo que também estive eu sozinha no palco, e eu própria criei a minha história com base nas histórias e nos textos que fui ouvindo. Os textos guiavam-me para um outro lugar, e guiavam-nos os sentidos. 

Dei por mim a correr de braços no ar, olhar-me nas montras das lojas, seguir o caminho das pedras, imaginar histórias e acreditar no que ia ouvindo, confiei no meu audio/encenador, e fiz a minha própria história (ou deverei dizer desgraça?)

Com tudo isto já estamos todos juntos em grupo, e a partir deste momento iremos permanecer em grupo, deslocamos-nos para uma outra zona, quando chegamos deparamos-nos com uma realidade que poderia ser ficção, volto a sentir o perigo nas veias, mas sinto-me meia dormente ainda da experiência anterior, estamos num local considerado problemático em alguns aspectos, mas prosseguimos com a nossa história ao mesmo tempo que nos encontramos apreensivos. Continuamos a caminhar, e paramos num jardim, assim grande, onde provavelmente à volta o perigo continua à espreita, mas ali, no meio, sentimos-nos seguros.

Sentimos o fim a aproximar-se, e com o fim, o nosso encenador indica-nos que devemos encontrar a pessoa que tem o número de auscultador anterior ao nosso, quando nos encontramos com a pessoa, que me é desconhecida, mas ao mesmo tempo conhecida por ter partilhado o mesmo momento que eu, temos então de contar o nosso dia, e temos de dançar e tocar na pessoa. No nosso colega de palco, aventura, caminhada, no fundo um colega desta humanidade e vida. As pessoas têm muita dificuldade em fazê-lo, vi-o pelo meu parceiro e pelo que observei dos restantes pares, há dificuldade em criar conexões, em conhecer as pessoas, em ouvi-las e em nós próprios conseguirmos mostrar-nos, dar-nos a conhecer. E ali, naquele palco que partilhámos, fomos um grupo, criámos conexão, todos precisámos uns dos outros para avançar.

No fim, acabámos deitados na relva (ou não, é opção de cada um, eu deitei-me) a apreciar a beleza do mundo e das estrelas, e a sentir todas as sensações ecoarem na nossa pele. Ali, no meio do sítio mais inesperado, foi possível encontrar calma, paz.

Confesso que acabei e foi quando cai com os pés na terra que me apercebi dos "perigos" que tinha ultrapassado, e este audiowalk foi sem dúvida uma vitória pessoal para mim.

Quando olho para trás, penso que na verdade o facto de passarmos pelos sítios onde normalmente não passamos, o criarmos o nosso próprio caminho dentro do caminho idealizado e o facto de dar um novo olhar aos locais por onde caminhamos, o irmos pelos caminhos estreitos e escondidos, tudo isto vai ao encontro da ideia de Deleuze e Guatari, no Tratado de Nomadologia. 

E com isto vocês perguntam-se afinal ela foi actriz ou foi espectadora?
Vão experimentar tudo isto e tirem as vossas próprias conclusões. Vão sem medo de se confrontarem com vocês próprios. Vão para aprenderem a conhecer-se a vocês e a observar e fazer parte de algo contigo e com o outro. Vão para aprenderem a saber ouvir. Vão para se sentirem vivos.




Uma Didascália
por Carolina


(Aqui fica o trailer deste espectáculo)




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